quinta-feira, 6 de outubro de 2011

PAINÉIS DE SÃO VICENTE, A QUESTÃO

II - A QUESTÃO


A) COMEÇA AQUI…


“Foram os illustres artistas Columbano e sua ex.m irmã,… os primeiros que, modernamente, segundo pude apurar, viram, com olhos esclarecidos, os quadros de S. Vicente. Depararam com elles casualmente, n'uma visita que, na primavera de 1882, fizeram ao Paço do Patriarcha. As taboas eram emtão utilizadas pelos operarios que, n'essa epocha, andavam a trabalhar no vasto casarão, e os tres visi­tantes … as não puderam examinar cuidadosamente e dar-lhes, portanto, todo o valor que mereciam.
... O sr. Joaquim de Vasconcellos, viu –as pela primeira vez n'uma visita que, na companhia dos srs. Ramalho Orti­gão e José Queiroz, fez, em 20 de julho d'esse anno, á Egreja e Paço de S.Vicente.
Joaquim de Vasconcellos conta, nos seus artigos para O Cotnmercio do Porto, como foi feita essa descoberta; e nós, que conhecemos o enthu-siasmo d'estes nossos amigos pelas coisas d'arte, e, em especial, por todas as que sejam uma affirmação do genio nacional, reconstituimos in mente o enthusiasmo de Ramalho Ortigão, Joaquim de Vasconcellos e José Quei­roz, ao depararem com essas admiráveis reliquias do século xv.
A mascara do Infante D. Henrique, mais que o aspecto geral das taboas, permitttu aos tres escriptores d'arte marcarem logo uma epocha approximada a essas taboas. Mas o sr. Joaquim de Vasconcellos não se contentou com isso. Tentou desvendar o mysterio; e, com esse intuito, vol­tou, no dia immediato, de manhã cedo, a S. Vicente, a estudal-as mais cuidadosamente.”[1]
Esta descoberta nada teria de extraordinário se fosse votada ao esquecimento como parece ter acontecido em oca­siões anteriores.
À sequência destes acontecimentos, a visita/descoberta de 1895 nada viria acrescentar se não fosse a acção determi­nada de um dos visitantes — o arqueólogo e crítico de arte Joaquim de Vasconcelos — ao dar conta do achado através de dois interessantes artigos publicados em O Comércio do Porto naquele mesmo Verão de 1895.
Nesses artigos, o autor noticiava a descoberta das quatro tábuas, prontamente conotadas com a chamada escola gótica, numa das quais figuraria o retrato do Infante D. Henrique. Esta identificação baseava-se na semelhança encon­trada entre aquela figura e a representada numa iluminura inserida num manuscrito da Crónica do descobrimento e conquista da Guiné atribuído a Gomes Eanes de Zurara, inserto num códice existente na Bibliothèque Nationale de Paris encontrado pelo investigador Ferdinand Denis em 1837.
Joaquim de Vasconcelos chamava, também, as atenções da opinião pública para a necessidade de as tábuas serem removidas para um lugar mais seguro, com vista a uma melhoria das condições de conservação das mesmas, não obstante estas se encontrarem, aparentemente, em bom estado.
Foi porém a força expressiva da pintura o que mais impressionou aquele autor. Toda a assembleia de sessenta figuras — onde julgou ver representados todos os estratos sociais, desde a nobreza armada, alto e baixo clero, aos letra­dos e juristas — parecia convergir para uma personagem central, duplamente figurada. Da totalidade do conjunto sobressaía um forte cunho individualista no tratamento de cada personagem.
Joaquim  de Vasconcelos escreveu ainda:
“Nas quatro taboas não ha vestígios de paizagem ou de architectura. Todo o espaço era pouco para tantas (60!) figuras de tamanho quasi natural. Nada ha de acanhado, de soi-disant gothico no desenho; paneja-mentos esplendidos, sentindo-se a anatomia sempre por debaixo. A pintura é sempre a oleo, o desenho de uma firmeza exemplar, a perspectiva bem estudada e até atrevida. O pintor caracterisa segundo os pre­ceitos do grande Van Eyck, e poderia muito bem ser um dos muitos portuguezes que acompanharam a du-queza de Borgonha,... a Flandres, e lã estudaram a fundo a arte,...” [2]
Joaquim de Vasconcellos emitiu várias opiniões sobre as personagens, identificando algumas, e alvitrou a hipótese de a figura central  representar o Rei D. Duarte, na figura do Santo Eduardo, seu padrinho e Rei de Inglaterra.[3] Bom, era um começo mas, essa tese foi facilmente negada (bem como outras identificações por ele adiantadas).
“Um exame completo das taboas convenceu-nos ainda de que o sr. Vasconcellos cahira em todos estes erros por não ter descoberto que cilas, na sua quasi totalidade, estavam repintadas. Mesmo limpas de pó, trabalho a que logo, cuidadosamente, procedemos, a tinta apresentava um tom sujo, ordinario, bem longe da finura e transparencia que caracterisa as tintas da epocha, e o vandalismo era mais evidente olhando os quadros de travez. Os empastamentos eram então facilmente visíveis, contrariando a affirmação da tenuidade das tintas que, no dizer do sr. Joaquim de Vas­concellos, dir-se-hiam sopradas tão tenue era, em geral (no seu entender), a camada que cobria as taboas, sempre que o nu era representado, nas mãos e no rosto dos personagens.
As únicas cabeças que não tinham sido repintadas eram as dos dois monges que oceupam o segundo e o terceiro plano do «painel dos fra­des». Mas só estas tinham escapado. As mãos d'essas personagens tinham também sido victimas das furias dos retocadores.
Depois, a não ser essas duas mascaras, nenhuma das outras, nem ainda as mãos, apresentavam a
dureza especial da pintura da epocha, e nem um só dos pannejamentos offerecia as pregas
características do es-tylo gothico, com quebras hirtas e duras.”[4]
No decorrer deste impasse, Sir Herbert Cook (visconde de Monserrate) teve a oportunidade de fazer
fotografar as tábuas, tal como foram encontradas reservando-se para mais tarde a publicação de um
artigo na revista The Burlington Magazine[5] (o que, como diríamos agora, fez o marketing das tábuas,
dando -as a conhecer no estrangeiro)
Após serem esboçadas as primeiras bases de análise das tábuas e lançado um alerta à opinião pública para o valor das mesmas, surgiu, durante anos, um primeiro impasse: qual o melhor local para colocar e tratar as tábuas? Como as preservar? Por quem? Com que meios?


[1] FIGUEIREDO, José de – O Pintor Nuno Gonçalves, p.21
[2] FIGUEIREDO, José de – cit. 3, p. 22
[3] FIGUEIREDO, José de – cit. 3, p. 23
[4] FIGUEIREDO, José de – cit. 3, p. 23
[5] FREITAS, Paula e GONÇALVES, Maria de Jesus – cit. 1, p. 20

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